quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FERREIRA GULLAR - MUITAS VOZES

01. DADOS DO AUTOR
José Ribamar Ferreira Gullar (São Luís MA 1930)
Publicou seu primeiro livro de poesia, Um Pouco Acima do Chão, em 1949. Recebeu prêmio, em 1950, pelo poema Galo, no concurso literário do Jornal das Letras, do Rio de Janeiro. No ano seguinte mudou-se para o Rio de Janeiro e passou a colaborar na imprensa carioca com poemas e críticas de arte. Publicou A Luta Corporal (1954) e Poemas (1958). Entre 1955 e 1959 participou da primeira fase do movimento da Poesia Concreta. Em 1959 rompeu com o Concretismo e publicou o Manifesto Neoconcreto no Jornal do Brasil. A partir de 1961 participou do movimento de cultura popular, integrando o CPC e a UNE. Foi preso, em 1968, e seguiu para o exílio político na Europa em 1971. Em 1975 foi publicado Dentro da Noite Veloz; seguiram-se Poema Sujo (1976), Antologia Poética (1977). Em 1977 recebeu o Prêmio Jabuti de Personalidade Literária do Ano. Nos anos de 1980 publicou Na Vertigem do Dia (1980), Toda Poesia (1980), Crime na Flora ou Ordem e Progresso (1986), Barulhos (1987); na década de 1990 saíram Formigueiro (1991) e Muitas Vozes (1999), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia em 2000. Inicialmente adepto do Concretismo, Ferreira Gullar posteriormente optou por uma poesia mais discursiva, em que os versos ora incorporam elementos da literatura de cordel, como em João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer (1962), ora se voltam para as tensões sociais e políticas do homem brasileiro, como em Dentro da Noite Veloz (1975) e Na Vertigem do Dia (1980).

2. CARACTERÍSTICAS DO AUTOR
"A passagem brusca da linguagem precisa e requintada das vanguardas para a expressão apoiada na linguagem simples dos cantadores, seguida de uma visão ingênua a respeito das questões estéticas e sociais e somada às derrotas da esquerda na América Latina, à clandestinidade e ao exílio contribuíram para que Ferreira Gullar reconsiderasse suas posições, buscando na poesia uma forma de expressar suas mudanças e seu aprofundamento de visão de realidade. Publicado em 1976, Poema Sujo, ´discursivo e quase um poema clássico´, segundo Ziraldo, é um livro de 103 páginas em que Ferreira Gullar exprime a totalidade de suas experiências no plano da vida e da literatura, por meio de versos assimétricos e dissonantes, carregados de paixão corporal. Na Vertigem do Dia, o reiterado questionamento sobre a poesia, as preocupações com os grandes temas do homem e da América Latina, as recordações da infância, a dor, a tristeza, a solidão e a solidariedade para com os menos favorecidos são os temas explorados por poemas curtos e herméticos em sua maioria."
Brait, Beth [1981]. Ferreira Gullar: a poesia como forma de indagação e conhecimento do mundo. In: Gullar, Ferreira. Ferreira Gullar. p.101.
"O pós-modernismo de 45 raiado de veios existenciais, a poesia concreta e neoconcreta, a experiência popular-nacionalista do CPC, o texto de ira e protesto ante o conluio de imperialismo e ditadura, a renovada sondagem na memória pessoal e coletiva... são todos momentos de uma dialética da cultura brasileira de que Ferreira Gullar tem participado como ator de primeira grandeza. À luz dessa leitura, contextual, a consciência que ditou o Poema Sujo não é exatamente a mesma que inventou A Luta Corporal, assim como a maturidade do escritor e cidadão pós-64 superou os seus horizontes ideológicos dos anos cinquenta. Não se trata de evolução na ordem dos acertos estéticos (estes não dependem, mecanicamente, da posição política do poeta); trata-se de um ver mais concretamente a História, um julgar mais criticamente o próprio lugar de poeta na trama da sociedade, um refletir mais dramaticamente a condição do homem brasileiro e do homem latino-americano sem medusar-se no fetiche abstrato, no fundo egótico, do ´homem´ em geral."
Bosi, Alfredo [1983]. Roteiro do poeta. In: Gullar, Ferreira. Os melhores poemas. 3.ed. p.8-9.
Ferreira Gullar estreou muito jovem com A luta corporal. “O nome do livro – diz o poeta – não é por acaso: era uma luta comigo mesmo. Na minha busca terminei fragmentando a linguagem. Achava que a linguagem era uma realidade. Desarticulei-a para encontrar essa realidade: ela não tinha essência nenhuma.”
Logo em seguida, o autor maranhense aproxima-se dos concretistas de São Paulo. Contudo, abjura-os em pouco tempo. Após esta ruptura, e sob o influxo da radicalização ideológica do início dos anos 60, vincula-se ao pensamento progressista da época, todo ele ligado às formulações populistas do presidente João Goulart. Rapidamente Ferreira Gullar torna-se um dos porta-vozes dos artistas politicamente engajados daquela década.
Publica então dois polêmicos livros de ensaios Cultura posta em questão (1965) e Vanguarda e subdesenvolvimento (1969). Também o teatro o atrai. Ajuda a fundar o grupo Opinião e escreve com Oduvaldo Viana Filho a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Com Dias Gomes escreve a peça Dr. Getúlio, sua vida e sua glória. Já os poemas, publicados apenas em jornais e revistas da época, confirmam o engajamento do autor e revelam certa tendência panfletária e uma freqüente queda no prosaísmo. Muitos desses poemas foram reunidos, mais tarde, em Dentro da noite veloz. Um deles, Agosto 1964, é bastante conhecido:

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques
viajo
num ônibus Estada de Ferro – Leblon
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções de juventude, adeus,
que a vida
eu a compor à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
Mas não ao mundo. Mas não à vida,
Meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira.

Mas é com o Poema sujo, 1975, que Ferreira Gullar encontra a solução dos impasses políticos e estéticos que impediam-no de realizar uma poesia de primeira grandeza. Politicamente, ele rompe com o comprometimento explícito das obras da década de 1960, preferindo embutir a questão social nas ações e lembranças que o poema evoca. Esteticamente, ele consegue através de uma expressão livre e ousada (mas não formalista) – uma legítima “tempestade de versos”, como disse um crítico – mergulhar na sua vida pessoal: a infância e a adolescência em São Luís, o passado próximo e o remoto, descobrindo a realidade brasileira e a sua própria interioridade a partir do exílio em outros países. A grande força da obra nasce do fato de Ferreira Gullar obter desta sucessão caótica de passagens existenciais o retrato vivo de um homem brasileiro (um intelectual, na verdade), em seu conjunto de angústias e esperanças, gozos e tormentos individuais. Por outro lado, este homem traz consigo, através dos tortuosos caminhos da memória, um contexto provinciano, o Maranhão, a quitanda do pai, o Brasil dos anos de 1930 e 1940, tudo magistralmente evocado. Mas o que de fato projeta o Poema sujo para além do documento humano e histórico são as interrogações contínuas do poeta a respeito da permanência e da transitoriedade das coisas. O Poema sujo é também um poema sobre a passagem do tempo, sobre o esquecimento e sobre o caráter único das experiências de cada ser:

(...) bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era...
Perdeu-se na carne fria (...)
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís do
Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos louça que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecido entre os pés de erva cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida.

Após seu retorno ao país em 1977, Ferreira Gullar tornou-se o poeta emblemático da redemocratização brasileira, voltando a ter forte atuação na área cultural. Escreveu para a tevê, militou na crítica de arte e debateu a situação da poesia. Em seus últimos livros, a temática da passagem do tempo e a da morte – já presentes no Poema sujo – adquiriram predominância e significativa pungência.


OBRAS PRINCIPAIS:
A luta corporal (1954);
Dentro da noite veloz (1975);
Poema sujo (1975);
Na vertigem do dia (1980);
Barulhos (1987);
Muitas vozes (1999).


3. CARACTERÍSTICA DA OBRA
Muitas Vozes
CRISTIANE COSTA
Muitas vozes ao gênero que o consagrou como um dos mais importantes autores brasileiros. Presente do poeta para seus leitores e admiradores meses antes de completar 70 anos, Muitas vozes revela uma mudança de tom na obra de Gullar. "Mesmo que A luta corporal e Poema sujo tratassem de questões completamente diferentes, têm uma coisa em comum que é a fúria. Ela está presente em todos os meus livros anteriores. Mas, neste, está amainada. É um livro mais reflexivo, em que a temática da morte está muito presente, não como medo, mas como reflexão", comenta.
Muitas vozes pode ser lido como a obra de maturidade de um autor que desde muito cedo despontou como uma voz singular na poesia brasileira. Nascido no Maranhão em 10 de setembro de 1930 como José Ribamar Ferreira, já sob o pseudônimo de Ferreira Gullar, o poeta lançou seu primeiro livro, Roçzeiral, aos 19 anos. Tinha apenas 24 quando publicou A luta corporal, uma obra radical que abriu caminho para a poesia concreta no país. "No começo, havia a busca por uma linguagem que transcendesse o discurso lógico, que fosse além da própria poesia como era feita até então, e que terminou por implodir a linguagem. Como conseqüência dessa implosão, veio a poesia concreta", reflete hoje o poeta.
Cinco anos mais tarde, Ferreira Gullar romperia com o movimento para criar outro, o neoconcretismo, esboçado no ensaio Teoria do não-objeto e que culminou com o famoso poema enterrado no chão.
Uma nova virada aconteceria no início dos anos 60. Fiel ao clima da época, Ferreira Gullar voltou-se para a cultura popular, impregnando-se da linguagem do cordel. Da época, datam João Boa-Morte e Quem matou Aparecida, além das peças Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, com Oduvaldo Vianna Filho e Dr. Getúlio, com Dias Gomes. Presidente do CPC da Une quando aconteceu o golpe militar, Ferreira Gullar se exilou na Argentina em 1971.
"Abandonei o neoconcretismo porque considerei que essa experiência estava esgotada. Isso coincidiu com uma virada da política brasileira, com a posse de João Goulart. Empolguei-me pela possibilidade de transformação social e minha poesia acompanhou isso", recorda Gullar. Segundo o poeta, essa reconciliação com a linguagem coloquial foi fundamental para definir novos rumos para sua obra. "Minha poesia de hoje é desdobramento disso. Costumo dizer que a poesia nasce da prosa. O que existe é a linguagem de todos. Uso e abuso dela, até da palavra chula. Nunca busquei o poema puro. Não me preocupo com experimentalismos ou estéticas verbais. Quero um poema que nasça da vida", afirma.
Foi no exílio que Ferreira Gullar escreveu seu livro de maior repercussão, Poema sujo, De volta ao Brasil, publicou uma série de ensaios sobre artes plásticas, sua segunda paixão, como Argumentação contra a morte da arte, além de uma Antologia poética. Barulhos, editado em 87, foi seu último livro de poemas. No ano seguinte, escreveu suas memórias em Rabo de foguete.
"Quando terminei Barulhos, tive a sensação nítida de que tinha me esgotado e não voltaria mais a escrever. Imaginei que a fonte tinha secado. Perdi a motivação e me senti vazio. Passava os meses sem ter vontade de escrever", conta Gullar. "Cheguei a passar um ano sem produzir um poema."
Mas, um belo dia, a fonte voltou a jorrar. Num quarto de hotel de Nova Iorque o poeta retomou a palavra. "Meu Pai" é dessa leva. A produção seria interrompida várias vezes até que, em 1994, Gullar conheceu sua atual mulher, a jovem poeta Cláudia Ahimsa, na feira do livro de Frankfurt dedicada ao Brasil. "Isso para mim foi um renascer. Passei a escrever com muito mais freqüência. Foi um encontro inspirador", revela, sem medo de parecer um poeta romântico e comum.
Em Muitas vozes ouve-se o eco de toda essa experiência acumulada ao longo de quase sete décadas. Da eterna luta corporal com a palavra presente em "Sob a espada" até a política expressa em versos de "Queda de Allende", o novo livro apresenta um Gullar continuamente renovado.
"Eu mesmo não acredito que estou chegando aos 70 anos. Nunca pensei que chegaria lá. Para mim, ano 2000 era algo impensável", afirma. No entanto, a idade lhe reservou boas surpresas, junto com a descoberta do amor tardio. "Nunca pensei que 70 anos fossem isso. Estou totalmente saudável, em plena vida", alegra-se o poeta, que parou de fumar há 10 anos e cortou a carne vermelha, as frituras e gorduras do seu cardápio, para dar uma ajudinha à sorte. "Não gosto de contar vantagem não. A gente sabe que é mortal, mas nem sempre se lembra ... felizmente."
Cristiane Costa é subeditora de Idéias

O silêncio e muitas vozes - * Davi Arrigucci Jr.
Desde o princípio, por tudo o que já fez, Ferreira Gullar sempre nos deixou esperando a grande poesia. E ela veio de novo calmamente, depois de um silêncio profundo,como um tumulto; chegou agora com Muitas Vozes. Há muito não se juntavam, na poesia brasileira, tantas coisas belas numa safra só.
Foi preciso muita coisa passar: o exílio, depois a morte rondar perto, familiar e sem ênfase; os mortos restarem no abandono do chão impenetrável; o silêncio crescer dos ausentes ao cosmos, até a estridência. E ainda assim de tudo ficar um pouco - o galo saiu de entre as plantas em novo anúncio; Cláudia Ahimsa virou musa do planeta Terra; o bem-te-vi cantou de volta em São Luís -, para só então a poesia mostrar-se como não-coisa, como voz, essa voz que somos nós, que não alcança o ser da coisa, que quer ser coisa na linguagem do poema, e é apenas som.
Mas som com sentido: testemunho de nossa precária condição frente aos astros e à única eternidade que de fato conhecemos, a do instante de vida: a polpa, o gosto vivo da fruta, o momento do sexo, tudo na íntegra irrecuperável na Palavra. Gullar ouve as vibrações do mito, mas tem os pés no chão e a escuta dos homens. Recolhe a poesia das vozes entrelaçadas à sua, com toda a simplicidade. A grande poesia pode estar ao rés da fala e ao alcance dos ouvidos.
No oco da voz (do poema) se forma o sentido que o poeta atribui às coisas que não o têm e cujo ser resta impenetrável para ele como o morto na cova. A força do concreto vem, no entanto, do instante de vida que fica na memória e toma forma poética na linguagem: a voz que não quer se apagar, que repete outras vozes mortas e refaz com palavras o gosto de alegria da hortelã, ou o que, intangível, adeja/ acima/ do que a morte beija.
A complexidade da síntese poética que se acha neste livro em que os temas da identidade, do tempo e da linguagem se defrontam com o silêncio e a morte é o resultado formal de uma longa e densa experiência. É importante observar que o processo de constituição dessa experiência foi exposto, em boa parte, no relato notável de suas memórias do exílio, Rabo de Foguete. Nele o drama vivido pelo poeta à mercê das circunstâncias políticas da história recente da América Latina se converte, mediante uma narrativa próxima do romance, num processo de escavação da subjetividade atravessada pela experiência histórica. A poesia - O Poema Sujo - surge então, em em meio ao sofrimento,como o último reduto da identidade pessoal frente às catástrofes do mundo contemporâneo.
Mas, nesse embate, é a morte que já ronda na pegada dos desastres, exigindo um outro sentimento do tempo e um novo aprendizado. Como é próprio de seu modo de ser, a forma do romance se desdobra no processo de aprendizagem, quando faltam regras de como proceder e justamente essa insuficiência se toma fato no enredo. Rabo de Foguete - coloca essa questão desde o começo, ao relatar os rumos da existência errante depois que a vida virou de cabeça para baixo. A poesia vem agora resgatar em fortes e vívidas imagens os guardados da memória.
Sob muitos aspectos, a matéria deste livro é a mesma, configurada, porém, em ritmo de verso, com outra concentração e intensidade. Não mais sob o hausto longo da narração, mesmo se na cadência entrecortada pelos capítulos curtos das memórias, mas, sim, condensada no instantâneo, recorta do fundo histórico e pessoal da experiência seres que foram parte de uma vida e personagens de um romance e agora são também motivos poéticos. Na verdade, figuras de uma dança da morte, que o poeta traz de novo à nossa presença, não pela mão, como no tópico medieval da dança macabra, mas pela voz, como vozes enlaçadas à sua, a voz que dá forma aos poemas, à qual se somam por vezes as vozes de outros poetas: Gonçalves Dias, Bandeira, Drummond, Cabral, Rilke. Comoventes poemas breves em que se tece na forma quebrada do ritmo o diálogo interrompido com os mortos: Thereza, Visita, Internação, Meu Pai, Evocação de Silêncios, 0 Morto e o Vivo. Complexos e límpidos poemas meditativos, de auto-reflexão, de reconhecimento das mudanças e dos limites de si mesmo e da voz poética: Nasce o Poeta, Adormecer, Tato, Reflexão, Aprendizado, Lição de um Gato Siamês, Não-Coisa, Isto e Aquilo. Extraordinários poemas longos de pressentimento e antecipação da morte: Nova Concepção da Morte, Morrer no Rio de Janeiro. E ainda muito mais, belos poemas, eróticos e de exaltação da vida e seus instantes fugazes: Definição da Moça, Sortilégio, Coito, Improviso Matinal, Pergunta e Resposta.
A atitude do homem comum, sem lugar entre a pretensão e a humildade, exposto com todas as suas fragilidades, exatamente como nas memórias, está de novo presente aqui. Com efeito, é um homem frágil quem está atrás da voz que nos fala, sozinho como o caniço
pensante de Pascal em face do infinito silêncio do cosmo. 0 poeta que reconhece que a poesia/ é saber falhar. Ou aquele que, ao sentir-se a si mesmo pelo tato, diante da certeza invencível da morte, também se dá conta da realidade palpável de sua presença no mundo. É na solidão cósmica, isolado dos mortos queridos onde o poema é apenas um inaudível ruído em meio à vastidão indiferente do universo, que o poeta se reconhece no pequeno sinal de vida, capaz no entanto de iluminar aos nossos olhos não só a morte, mas também o amor e o gosto da vida
A lírica se exprime aqui nos ocos de uma história vivida e lembrada, talhada no corte breve e emocionante do poema, supondo, porém, o processo oculto de um aprendizado diante do que arrasta a tudo e a todos junto com o próprio poeta e que está além de toda experiência possível: a morte que o tempo traz implacavelmente e o poeta experiente espera sem ênfase, 'mera noção que existe/ só enquanto existo', o fim que está fora de seu alcance.
Depois de 12 anos de silêncio, oculta como a natureza, a poesia volta ao sol do Rio, à luz de São Luís. Não se podia pedir mais a Gullar.

*Davi Arrigucci Jr. é ensaísta, professor de literatura e autor, entre outros livros, de Outros Achados e Perdidos (Companhia das Letras).

4. ENTREVISTA DE FERREIRA GULLAR
O poeta Weydson Barros Leal, entrevista novamente o poeta Ferreira Gullar, [12 de julho de 1999], a propósito do livro MUITAS VOZES, Ed. José Olympio, 1999.

WEYDSON - Depois de 12 anos sem publicar poesia em livro, 'Muitas Vozes" seria uma comemoração de 50 anos, já que seu primeiro livro, "Um pouco acima do chão", é de 1949?
GULLAR - A rigor está certo. Mas eu não levo em conta esse cálculo. Eu publiquei agora pensando nisso... Na verdade, eu passei esses 12 anos sem publicar apenas porque eu não tinha um número suficiente de poemas para constituir um livro. A partir de 1994, 95, quando eu conheci a Claudia (Claudia Ahimsa, poeta, namorada de Gullar) e saí da Funarte, houve unia retomada. Em 96 já havia alguns poemas, mas eu preferi deixar que aquele veio poético que estava se manifestando se esgotasse. Porque a minha poesia funciona um pouco como a mineração. De repente eu descubro esses veios até esgotá-los. A partir daí eu passo um tempo sem escrever. Assim, quando eu percebi que tinha um número suficiente de poemas, pensei: chegou a hora de publicar.
WEYDSON - Lendo o livro, percebe-se que esse veio é de temática variada, há poemas sobre a vida, a morte, reminiscências da infância, etc...
GULLAR - Pois é. No poema "Evocação de Silêncios", o silêncio é o tema. Ali, tudo nasceu de uma lembrança de quando eu era garoto em São Luís, perto do Largo de Sant´Aninha, onde tinha uma casa com um corredor que ia da calçada até o fundo. O piso dessa casa era de um tipo muito comum naquela época. Então eu lembrei de ter entrado nessa casa numa tarde de muito sol, enquanto brincava por ali, mais o i met7os 2 horas da tarde nessa hora em São Luís a barra é pesada, com muito calor - e eu entrei para descansar um pouco Eu já tinha um certo hábito de sentar ali, naquele chão frio, naquela casa silenciosa - lá, parece que morava apenas um casal idoso...
WEYDSON - Eles lhe, viam?
GULLAR - Não.. Tinha um corredor muito vazio... Eu ficava sentado tio chão frio, olhando aquele corredor, aquele piso, o silêncio, o vazio... Então, de repente, me veio a lembrança de tudo isso, e isso gerou o poema... Eu pensava que ia escrever só um poema, mas o primeiro desencadeou outros, e assim foi uma série de poemas que envolvem a quitanda do meu pai..
WEYDSON - E daí o açúcar...
GULLAR-É.. Na quitanda do meu pai, abaixo das prateleiras de mercadorias, havia uns depósitos com tampas, onde tinha feijão, arroz--, açúcar, farinha... Eu lembro que cabia bastante, açúcar naquele depósito. Quando se levantava aquela tampa, vinha aquele cheiro cálido... E até hoje, mesmo em casa, quando eu abro um recipiente de açúcar, me vem aquela sensação, o cheiro cálido. Então, tio poema, o silêncio é o açúcar, é comparado ao açúcar, e está cheio de vozes. de tumulto. de alarido, da luz da manhã.. Esses são os veios de que eu falo.
WEYDSON - A segunda parte do livro "Muitas Vozes", você intitulou "Ao Rés da Fala". O que há nesse título?
GULLAR - Ali está a saída de um impasse. Quando eu terminei de escrever o último poema de "Barulhos" (I 9 8 7), eu percebi que havia nele muitos elementos prosaicos. Na minha visão, o poema é o lugar onde a prosa se transforma em poesia, é o lugar da metamorfose, onde o processo se dá. O poema não é uma coisa estática, terminada, ele é algo em processo. A leitura desencadeia o processo que está latente ali. Ao lê-lo, o leitor transforma a palavra em poesia. Naturalmente, o meu poema nunca é um poema puro, mas nele a prosa vira poesia, e portanto para haver poesia tem que haver a transformação. A gente sabe que o carvão dá o fogo, mas para haver o fogo tem que existir o carvão. Assim, no poema sempre haverá fogo e carvão.
WEYDSON - E cabe ao poeta realizar a mistura , e determinar quando o fogo é suficiente, quando já há mais fogo que carvão...
GULLAR - Em "Nasce o poema" (Barulhos, 1987), eu cheguei à conclusão que havia carvão demais. Então eu pensei: se eu puser mais prosa aqui, o avião bate no chão, não há mais como... E durante um certo tempo eu parei.
WEYDSON - Como- resposta a esse mergulho, "Ao Rés da Fala" seria um recuo?
GULLAR - Não, eles avançam, e são quase prosa. Porque neles não há a alquimia evidente que há normalmente em minha poesia, onde a palavra se choca com outra palavra.. Não há a palavra inesperada nesses poemas. _Há quase somente descrição, como no poema "Fotografia de Mallarmé".
WEYDSON - Eu discordaria apenas quanto à ausência da surpresa, da palavra inesperada, uma vez que o primeiro poema do livro ("Ouvindo apenas") é extremamente elaborado, visceralmente sofisticado...
GULLAR - Quando eu digo que esses poemas são prosa e que há neles um processo diferente, não é a alquimia' Ali há uma superação do discurso diferente do que eu fazia em outros poemas. Na verdade, eles dão o tom do livro. Eu estou de acordo com você quando diz que os primeiros poemas são muito elaborados, mas, por exemplo, o primeiro poema é bem anterior aos outros.
WEYDSON - A organização do livro, à exceção dos "Poemas Resgatados', atende a uma ordem cronológica?
GULLAR - Quase sempre eu adoto essa ordem cronológica porque acho que a minha poesia é uma reflexão.
WEYDSON - Vejo que há poemas em "Muitas Vozes" cujos temas já aparecem em livros anteriores a "Barulhos".
GULLAR - É verdade Mas eu prefiro não interferir nisso; ninguém controla o processo da lida. Mas há uma lógica interna nesses poemas. Aí estão indagações e respostas que se sucedem progressivamente. Isso não quer dizer que eu desenvolva um processo filosófico, mas são perguntas e respostas que vão ocorrendo durante a vida, por alguma razão que eu não sei mas que sei que existe. Eu acredito que o meu trabalho com a poesia é a lúcido, exigente, do artesão, mas o que faz o poema nascer, os elementos convocados para fazê-lo, isso eu deixo que venham como vier. Como se eu fosse um metalúrgico que trabalha com qualquer metal, que não fica exigindo prata ou ouro. Com o metal que ele acha que dá, ele faz.
WEYDSON - Como seria esse processo, dando como exemplo um dos poemas de "Muitas Vozes"?
GULLAR - Por exemplo: o poema "Um Instante ". Num domingo à tarde, nessa sala vazia, o sol, o silêncio e a claridade, eu sentei aqui (apontando uma cadeira) e de repente senti que estava pleno, leve, não tinha passado, não tinha futuro, sem culpas, sem remorsos, sem preocupações - era um instante, dois segundos que estão neste poema (pegando o livro e lendo o poema):

Aqui me tenho
como não me conheço nem me quis
sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

Mas você ainda pode perguntar por que eu fiz o poema, e aí eu vou formular aqui, pela primeira vez a sua gênese: ele é o resultado da reflexão de alguém que pensa sobre o passado, nos problemas da memória, nas coisas que acabaram, e que ao mesmo tempo são um peso sobre sua vida. Então, o momento em que nada disso pesa, é um momento de liberdade e plenitude. De repente eu compreendo que estar sem mim é uma liberdade total. Por isso eu digo que é. um processo de pensamento que não é consciente mas que está sendo feito, e o poema nasce disso. Por isso eu penso que ao alterar essa ordem, eu posso estar violentando um processo mais profundo de reflexão que está tio poema.

WEYDSON - Mas eu percebo no_ livro, ao lado de poemas que podem ser resultados desses processos, outros que parecem revelações instantâneas, como o poema "Tato".
GULLAR - É mais ou menos o mesmo processo... Eu sentei ali (apontando), passei a mão na cabeça, e de repente toquei meu osso. Aí eu pensei: -puxa, sou eu, eu existo, e em vez de dizer como Descartes "penso, logo existo,", é o, contrario , "toco, logo existo" (risos). Em vez de me afirmar pelo pensamento, eu me afirmo pelo tato. Então eu existo aqui, e se isso vai acabar, se não houve antes, se é efêmero, não interessa, eu estou aqui concretamente. Agora, por que eventualmente alguém passa a mão na cabeça e não pensa isso? Por que outros poetas, que fizeram o mesmo gesto, não escreveram esse poema, e eu é que escrevi? Porque eu tenho um tipo de reflexão que faz com que esse ato gere uma resposta determinada. Talvez por isso as pessoas estejam dizendo que esse livro é um livro maduro, por e estão vendo que é um livro decorrente de uma reflexão que que vai sendo feita apesar de mim, uma reflexão subjacente, que termina provocando os poemas em face disso, quer dizer, de pequenos acontecimentos que se refletem nesse modo de ver o mundo. Essa é a razão por que esse "tato me faz escrever o poema e o mesmo tato experimentado por outros poetas não os faz escrever ou faz com que escrevam outro, ou ainda que nem dêem importância a isso...
WEYDSON – Em 'Muitas Vozes', há reminiscências de infància, lembranças de pessoas que passaram por sua vida e não estão mais aqui, e há os "Poemas Resgatados", aqueles que estavam nas gavetas. Depois do livro impresso, você ainda teve a sensação de que faltava algum poema, de que faltava alguém?
GULLAR - Eu custei a entregar o livro ao editor. A Maria Amélia, minha querida amiga (diretora editorial da José Olympio), me cobrou muito o livro depois que leu uma entrevista em que eu dizia que o livro estava terminado. Mas eu fiquei ainda quatro meses lendo os poemas, largava, voltava, foi assim até nascer outro poema, que eu ainda incluí no livro, quando só então eu o dei por encerrado.
WEYDSON - E a idéia dos "Poemas Resgatados"? Como foi tirá-los da gaveta?
GULLAR - Eu já te contei essa história- Em 1970, um pouco antes de ir para o exílio, eu escrevi um poema sobre a minha casa em São Luís do Maranhão. Lá, naquela casa de assoalho de tábua corri ia um espaço de quase meio metro entre as tábuas e o chão. Às vezes caía dinheiro por entre as fendas, eu tirava uma tábua e entrava ali para buscar minha moeda que estava lá embaixo. Havia um cheiro forte, de décadas, de todo aquele pó, um pó preto que parecia pólvora . O poema era sobre isso, sobre a casa, essas coisas. Bem, ele estava escrito, mas eu ainda não sabia se estava pronto. A verdade é que eu tive de sair de casa correndo quando começou a minha vida clandestina, e não voltei mais. Quando eu já estava em Moscow, eu lembrei do poema, procurei entre as coisas que tinha levado e terminei pensando: perdi o poema. Foi aí que eu decidi reescrevê-lo, e já em 1975 ele foi publicado no meu livro "Dentro da Noite Veloz". O poema se chama "A casa ", e foi então traduzido em várias línguas, despertando interesse em muita gente, como nos meus tradutores nos Estados Unidos, na Alemanha, na Espanha, na Argentina, na Holanda.. Alguns anos depois, de volta do exílio, eu abri uma pasta de manuscritos que encontrei e lá estava o poema original, que agora está em "Muitas Vozes".
WEYDSON - Como ele se chama agora?
GULLAR - "Sob os pés da família ". Mas então, quando eu li o poema que achei, era outro poema O tema era o mesmo, mas o que eu tinha escrito era outra coisa. Eu estava certo que tinha reconstituído tudo, e de repente era outro poema. Evidente que alguns pedaços são idênticos ou parecidos, mas é outro poema. Isso me provocou uma reflexão: se eu não tivesse perdido esse poema eu não teria escrito o outro. Quer dizer, a possibilidade de um mesmo tema gerar poemas diferentes. Porque a gente tem a suposição de que o poema que a gente escreve é a única forma possível do que se quer dizer, mas está provado que não é...
WEYDSON - Então esse poema tem quase 30 anos...
GULLAR. - É...(pensando)...ele é de 70. Mas entre os "Poemas Resgatados" há poemas ainda anteriores, quer dizer ..(em dúvida) ... pode haver alguns para frente... São poemas que foram apenas anotados.. Por exemplo: quando eu trabalhava na sucursal do Estadão (Jornal Estado de São Paulo) aqui no Rio, eu ficava sozinho lá no meu canto, anotava certas coisas, mas não dava tempo, os caras vinham, "ô Gullar, escreve esse texto aqui! ", e tal coisa... Então interrompia aquilo e eu fui tendo na minha gaveta um monte dessas anotações. Quando eu saí do Jornal, peguei tudo, pus dentro de uma pasta e trouxe para casa. E essa coisa ficou aí, guardada em outra gaveta.
WEYDSON - E como você achou?
GULLAR - É uma coisa estranha... Eu sou um organizado dispersivo - organizo tudo mas depois não acho: tá guardado em algum lugar, onde eu não sei. De repente eu fico achando, coisas "guardadas" que estavam " perdidas ". Foi assim que eu encontrei esses poemas. Quando eu comecei a ler, pensei: eu poderia dar uma forma definitiva a isso. Então trabalhei os poemas. Os "Poemas Resgatados" não estão como foram escritos, entretanto, eu os trabalhei com o espírito com que foram escritos. Eu tentei me reintegrar naquele ambiente e retomar os temas, as coisas..
WEYDSON - Haverá lançamentos fora do Rio de Janeiro? (O lançamento oficial no Rio ocorreu em 12 de julho de 1999).
GULLAR - Eu pretendo fazer o lançamento lá em São Luís do Maranhão. Eu estou devendo essa ida à minha mãe, a meus irmãos, pois eu disse que iria no ano passado e não pude, tive que cancelar. Você sabe que tem um poema aqui (pegando o livro 'Muitas Vozes") que foi escrito lá em São Luís?
WEYDSON - Nos "Poemas Resgatados"?
GULLAR - Não, nos novos. Eu escrevi tia última vez que estive lá, há uns três anos. Chama-se "Volta a São Luís ". É um poema do exílio ao contrário. Porque o Gonçalves Dias, quando escreveu o dele ("Canção do Exílio") estava tio exílio, e manifestou aquele sentimento, de forma muita bonita. "as aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá. " Quer dizer, elas são aves, estão cantando, eu estou ouvindo, mas não é a mesma coisa. E essa carência da sua terra, da sua pátria, foi manifestada por ele de forma muito especial. No caso do meu poema, eu estava num hotel lá em São Luís, com um jardim enorme, lindo, mas onde mal se consegue dormir porque muito cedo os bem-te-vis começam a cantar: "bem-te-vi, bem-te-vi, te-vi, te-vi... " E é uma algazarra. Aquilo foi gozado, porque onde eu morava, quando era menino em São Luís, também era cheio de bem-te-vis. Então, de repente, ouvindo esses bem-te-vis, eu estava ouvindo os bem-te-vis de minha infância, não era só aquele pássaro que estava ali, era o contrário, e o poema diz assim (pegando o livro e lendo o poema):

Mal cheguei e já te ouvi
gritar pra mim: bem te vi!
E a brisa é festa nas folhas
Ah, que saudade de mim!

O tempo eterno é presente
no teu canto, bem te vi

(vindo do fundo da vida
como no passado ouvi)

E logo os outros repetem:
bem te vi, te vi, te vi

Como outrora, como agora,
como no passado ouvi

(vindo do fundo da vida)

Meu coração diz pra si:
as aves que lá gorjeiam
não gorjeiam como aqui

Aí foi o contrário (risos). O Gonçalves Dias sentiu longe que as aves que lá gorjeavam não gorjeavam como na sua terra; eu volto à minha terra, e ao ouvir o bem-te-vi percebo que as aves que gorjeiam . fora de São Luís, não gorjeiam como em São Luís. E olha que quando eu estava escrevendo o poema, eu não estava prevendo esse fim...

WEYDSON - Em cada poeta, a sensibilidade se exercita ou se manifesta das mais diferentes formas. Em você, eu percebo algo muito curioso: a sua sensibilidade é igualmente apurada nos cinco sentidos, na audição dos "barulhos", dos "alaridos", no olfato que percebe o "grito" do açúcar, no tato de seu próprio corpo, na visão do sol, das coisas, no paladar das frutas que apodrecem... Ou seja, enquanto a maioria dos poetas trabalha muito mais com a percepção visual ou com a memória dessa percepção, você elabora seus poemas com igual densidade a partir da percepção ou da memória dos cinco sentidos.
GULLAR - Eu nunca tinha percebido isso, mas você está dizendo uma coisa que é verdade. Eu sou muito sensorial, todas as coisas me tocam, as sensações têm um poder muito forte sobre mim: o cheiro das coisas, o tato, os sons (não só os musicais, mas o barulho, o silêncio - a ausência do barulho), e a coisa visual, que me é muito intensa. Eu acho que a percepção visual é a percepção mais inteligente, a mais humana. Eu digo mais humana porque as outras sensações são mais obscuras, ou seja, o olfato, o faro, é bem animal, assim como de certa forma o tato e a audição. E embora a audição não seja tão obscura, ela é incontrolável, os sons, os barulhos, te penetram independente de tua vontade; você não fecha o ouvido como fecha o olho. O ouvido não tem pálpebras. Por isso eu entendo muito bem quando o João (João Cabral de Melo Neto) diz que a música desarruma as coisas. Para que ' m é muito mental,. muito racional como o João é - que tem a necessidade de ser, porque ele é um homem muito sensível e tem a necessidade de controlar a sensibilidade - então, ele tem de criar aquela forma objetiva, estruturada, controlada, para não se desintegrar. Nesse sentido, a música vem e acaba com toda ordem. Ela tem uma ordem, mas é dela, não é a tua, da tua razão, da tua lucidez, pois o mundo é organizado por nós a partir da percepção visual Nós percebemos as distâncias, os objetos, a claridade do dia, mas todo esse conhecimento tem por base a percepção visual
(...)

5. FRAGMENTOS DA OBRA

MUITAS VOZES
Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fósseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

Inventário
Vivo a pré-história de mim
Por pouco pouco
eu era eu
José de Ribamar Ferreira Gullar
Não deu
O Gullar que bastasse
não nasceu

That Is The Question
Dois e dois são quatro.
Nasci cresci
para me converter em retrato?
em fonema? em morfema?
Aceito
ou detono o poema?

Sob a Espada
mas que sentido tem tecer palavras e palavras
- amoras
auras
lauras
carambolas -
com esta mão mortal
enquanto o tempo luze sua espada
sobre mim?
Para que armar mentiras
se a água é água se a água é nuvem (entre meus pés) se a folha é por si só lâmina verde e corta e se meus dentes estão plantados em mim?
nesta gengiva sim
que sou eu mesmo
e unha e ânus
e anca e osso
e pele e pêlo
e esperma e
escroto
com que invento
um verso torto

Nasce o Poeta (parte 7)
Na Quitanda
A moça baunilha
uma flama negra
na quitanda morna
confunde o sorriso
com o sorrir das frutas
seu cabelo de aço
era denso e bicho
seu olhar menina
vinha da floresta
sua pele nova
um carvão veludo
sua noite púbis
uma festa azul
misturada ao mel
no calor da tarde
durou dois segundos?
uma eternidade?
ela aquele cheiro
de casa de negros
de roupa engomando
rua do Coqueiro?
ela sua saia
de chita vermelha?
hoje pe uma pantera
guardada em perfume

Nasce o Poeta (parte 10)
A coisa e a Fala
a boca não fala
o ser (que está fora
de toda linguagem):
só o ser diz o ser
a folha diz folha
sem nada dizer
o poema não diz
o que a coisa é
mas diz outra coisa
que a coisa quer ser
pois nada se basta
contente de si
o poema empresta
às coisas
sua voz - dialeto -
e o mundo
no poema
se sonha
completo

Meu Pai
Meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem
quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro
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